Piaget: o significado da inteligência e o desenvolvimento da criança de 0 a 2 anos
Jerry Adriane Pinto de Andrade.[1]
RESUMO
Para Piaget, a inteligência constitui uma atividade organizadora cujo funcionamento prolonga o da organização biológica e o supera. Assim, a criança ao nascer passa a interagir com o mundo através dos reflexos hereditários (sucção, audição, preensão, visão etc) que já comportam o jogo complexo dos mecanismos de assimilação e acomodação. Nessa interação entre sujeito e objeto, estes reflexos vão se diferenciando e promovendo mudança. A primeira destas é descrita por Piaget como a aquisição dos primeiros hábitos ou reação circular primária. Esta por sua vez, evolui para secundaria e terciária até que no final do período sensório motor com o emergir da representação e da invenção mental seu pensamento parece escapar de todo e qualquer determinismo. Desta maneira, ocorre uma descentração geral do seu corpo, onde ela deixa de ser um corpo determinado por um universo sensorial e passa a ser um corpo entre outros num espaço e tempo sujeito a causalidade.
PALAVRAS-CHAVE: Inteligência. Esquemas hereditários. Reação circular. Invenção mental. Representação
Piaget: the meaning of intelligence and a child’s development from birth to two years of age
ABSTRACT
For Piaget, intelligence constitutes an organizing activity whose functioning extends and supersedes that of the biological organization. Thus, at birth, the child begins to interact with the world through inherited reflexes (sucking, hearing, prehension, seeing, etc.) which already include the complex balance of mechanisms of assimilation and accommodation. In this interaction between subject and object, these reflexes begin to differentiate themselves and to promote change in the latter. The first change described by Piaget is the acquisition of first habits or primary circular reaction. This, in turn, evolves into secondary and tertiary circular reactions until, at the end of the sensorimotor stage, with the emergence of representation and mental invention, the child begins to symbolize actions or facts before effectively performing any specific behavior, i.e., by an actual invention his/her thought seems to escape any and all determinism. In this way, a “decentration” of the child’s body takes place in which he/she ceases to be a body determined by a world of sensory perceptions and comes to be a body among others in space and time, and subject to causality.
KEY WORDS: Hereditary diagrams, Circular Reaction, Mental Invention, Representation.
Introdução
É antigo o debate sobre o papel da influência da herança genética ou do ambiente na formação da inteligência. Na maioria das vezes os cientistas estão preocupados em quantificar cada uma dessas influências, ao invés de entender de que forma interagem os diversos fatores no seu desenvolvimento. No trabalho escolar, quando os professorem admitem que a inteligência é inata, esbarramos em questões ideológicas, ligadas ao racismo, a eugenia e a outros determinismos biológicos, que muito atrapalham a aprendizagem dos alunos.
A teoria de Jean Piaget denominada de Epistemologia Genética é a mais conhecida concepção construtivista da formação da inteligência. O autor reconhece, inicialmente, três fatores clássicos muito discutidos e reconhecidos por outros autores da época: a) a maturação do sistema nervoso, que abre possibilidades a serem desenvolvidas, b) o ambiente físico, no sentido da qualidade de contato, experiência, que a criança tem com o meio, c) a influência do meio social. Esses fatores são necessários, mas não suficientes para explicar o desenvolvimento ontogenético do sujeito, nem mesmo todos reunidos. Assim, Piaget propõe um quarto fator, o da equilibração, que além de explicar cada um dos anteriores, comporta a sua própria especificidade. Assim, a Teoria de Equilibração, elaborada pelo autor, ressalta que a construção do conhecimento ocorre através de desequilíbrios e reequilibrações constante. (FLAVELL, 1988).
Assim, este artigo tem como objetivo descrever o entendimento de inteligência na perspectiva piagetiana e de que forma essa vai sendo construída desde o nascimento até os dois anos de idade, período caracterizado de sensório-motor.
Nesse sentido, Piaget (1987) considera que criança já tem a compreensão antes mesmo do desenvolvimento da linguagem; em outras palavras, existe uma inteligência prática anterior à linguagem. Para explicar essa premissa, o autor utiliza o conceito de esquema; esse é o que há de comum entre várias ações diferentes e análogas, ou seja, são instrumentos dotados de uma funcionalidade (adaptação e organização) de ação generalizáveis. Assim, todo esquema ou estrutura é um sistema de transformação que “comporta leis enquanto sistemas (contrário às propriedades dos elementos) e que se conserva e se enriquece pelo próprio jogo de suas transfomrções, sem que estas conduzam para fora de suas fronteiras ou façam apelo a elementos exteriores” (Piaget, 1969.p.8). Os esquemas cognitivos são formas funcionais de estruturas dinâmicas e não material que compreendem os caracteres de totalidade, transformações e auto-regulações.
Dessa forma, este artigo apresenta três momentos: inicialmente procurou-se discorrer sobre o significado da inteligência para Piaget; depois buscou-se descrever o período sensório-motor, que por sua vez foi subdividido nos seguintes tópicos: a) o exercício dos reflexos (do nascimento até 1 mês); b) rumo à conduta intencional inteligente - da repetição à formação dos primeiros hábitos (1 a 4 meses); c) as condutas quase intencionais anunciam a inteligência empírica (4 a 8 meses); d) as condutas intencionais constituem-se num ato inteligente (8 aos 12 meses); e) a conduta da vara anuncia a inteligência sistemática (dos 12 aos 18 meses); e f) a invenção mental liberta o pensamento de todo e qualquer determinismo e define a inteligência sistemática (dos 18 aos 24 meses); por último, foram tecidas algumas considerações finais.
O que é inteligência para Piaget?
Jean Piaget graduou-se em Ciências Biológica e dedicou-se ao estudo dos moluscos (do latim molluscus, mole), animais de corpo mole, que se encontram adaptados a ambientes marinhos, de água doce ou terrestre. Os moluscos constituem um grande filo de animais invertebrados, que compreende seres vivos como os caramujos, ostras, lulas, polvos, etc. Foi estudando esses animais, mais especificamente os moluscos de Valois, que Piaget construiu uma respeitável bibliografia sobre o assunto que lhe conferiu mais tarde um título de Doutor. Além de dedicar-se às Ciências Biológica, tinha outros interesses, tais como: religião, sociologia, filosofia, psicologia e epistemologia, etc. Assim, o estudo dos moluscos de Valois e suas adaptações serviram de reflexão para a conceituação de Inteligência. Dessa maneira, para compreendemos o significado da inteligência na obra piagetiana é preciso entender o que é uma adaptação para as Ciências Biológicas.
Uma adaptação é qualquer característica ou comportamento natural evoluído que torna algum organismo capacitado a sobreviver em seu respectivo habitat. Pode ser anatômica, fisiológica ou comportamental. Assim, as adaptações resultam de um processo de seleção natural ao longo de várias gerações seguidas de mudanças. Basta observarmos a espessura e a forma das conchas dos moluscos, para relacionarmos essas adaptações com o ambiente em que elas vivem. Os caracóis possuem uma concha fina que não prejudica sua locomoção em ambiente terrestre. O caramujo tem uma concha mais espessa, capaz de resistir ao choque das ondas. As ostras e mexilhões apresentam conchas achatadas de duas valvas, prendendo-se às rochas e resistindo à força da água. Os polvos e as lulas não possuem conchas externas e isso permite uma locomoção ágil por propulsão com jatos de água.
Maturana e Varella (2001) definem adaptação como sendo um acoplamento estrutural entre organismo e meio; assim todos os seres vivos nascem com uma estrutura inicial que vai condicionar o curso de sua interação e delimita as modificações estruturais. Por outro lado, existe um entorno (meio ambiente) no qual os seres vivos nascem e passam a interagir: organismo e meio, são, pois, estruturas que operam independentemente entre si, mas existe congruência estrutural indispensável à manutenção da unidade.“Nesta congruência estrutural uma perturbação do meio não contém em si uma especificação de seus efeitos sobre os seres vivos. As suas estruturas, é que determinam quais mudanças ocorreram em resposta” (Idem, p.108).
Assim, acoplamento estrutural é sempre mútuo, organismo e meio sofrem modificações. Por exemplo, a produção de oxigênio pelos organismos aeróbicos, há milhões de anos, após a origem desses organismos, desencadeou uma mudança estrutural na terra, que passou a ter esse gás em percentagem importante em sua atmosfera. Sua presença levou a uma seleção de variedade estrutural em muitas linhagens de seres vivos, chegando quase a dizimar toda a vida anaeróbica. Entretanto, têm-se os hábitos de achar que é o ambiente que seleciona os organismos e não que ocorre uma série de interações onde organismo e meio se modificam mutuamente; dessa forma existe uma compatibilidade ou comensuralidade, onde meio e organismo atuaram como fontes de perturbações mútuas promovendo mudanças de estado (MATURANA E VARELA, 2001).
Desse modo, todos os organismos vivos existentes estão adaptados ao planeta Terra; portanto, não se deve falar que uma baleia é mais adaptada que uma formiga ou que as plantas aquáticas são mais adaptadas que as terrestres. Assim a manutenção da adaptação é uma condição necessária para existência de todos os seres vivos. Entretanto, devemos ter em conta que essa adaptação sempre será uma deriva natural congruente com o meio (MATURANA E VARELA, 2001). Mais afinal qual a relação entre adaptação biológica e a inteligência?
Para Piaget (1987), a inteligência é uma forma particular de adaptação biológica, e, para tentar explicá-la, ele ressalta que a espécie humana apresenta dois grupos de hereditariedade. No primeiro grupo, encontra-se fator hereditário de ordem estrutural, que compreende uma hereditariedade específica e exclusiva da espécie humana e está veiculado à constituição do nosso sistema nervoso e dos nossos órgãos do sentido. Assim, cada espécie de seres vivos, presentes no nosso planeta, apresenta sua hereditariedade específica que a caracteriza. Apesar de importantes, esses fatores são limitativos, em virtude dos mesmos reduzirem-se apenas às percepções sensoriais, podendo estas impedir ou facilitar seu funcionamento, mas não a explica, daí a necessidade de um segundo grupo, para explicá-la. O segundo grupo é a parte funcional da inteligência que abrange os processos gerais de funcionalidade da organização vital, ou seja, todos os seres vivos - da bactéria ao homem, funcionam de forma semelhante, embora construam, ao funcionar, estrutura de complexidade crescente. Para o autor, as funções são invariantes - o que varia são as estruturas. Quais são então essas funções invariantes?
Essas funções invariantes são a organização e a adaptação. Dizer que a inteligência é um processo particular de adaptação biológica é, portanto, supor que é essencialmente uma organização e cuja função é estruturar o universo assim como o organismo estrutura seu ambiente. Dessa forma, “adaptação é o equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. Porque na adaptação você tem sempre os dois pólos: você tem um pólo indivíduo assimilação e o pólo objeto na acomodação” (Piaget, In: Bringuier, 1978, p.61-63), ou seja “[...] a assimilação é determinada pelo indivíduo e a acomodação pelo objeto”, sendo esse último o processo que resulta das pressões exercidas pelo meio” (Idem, p.61-63) .
Desse modo, o processo de assimilação-acomodação é o mecanismo fundamental de modificações dos seres vivos, fenômeno que vale tanto para os processos anátomo-fisiológicos quanto para compreensão do mundo, gerando pensamento. Entretanto, é importante frisar que “[...] assim como não há acomodação sem assimilação, já que é sempre acomodação de alguma coisa que é assimilada [...], de igual modo não pode haver assimilação sem acomodação [...] ” (Idem,p.61-63).
Entretanto, o conceito de organização como invariante funcional nos remete à origem biológica da inteligência. Nesse caso, a inteligência deve apresentar um grau ótimo de organização entre suas estruturas internas para que seu bom funcionamento seja garantido.Tais estruturas são integradas, o que significa dizer que a alteração de uma única estrutura é suficiente para provocar uma reestruturação da organização na sua totalidade. Dessa maneira, embora seja denominada de invariante funcional, a organização não é invariável (PIAGET, 1987).
No tocante às funções cognitivas, a organização tem função reguladora, subdividindo-se em duas categorias. Estas, por sua vez, apresentam-se sob o ponto de vista estático, pelas noções de totalidade e de relação e, pelo ponto de vista dinâmico, pelas noções de ideal e valor. Toda organização pode ser concebida como uma totalidade, como também cada esquema de ação. Mesmo quando nas primeiras semanas o comportamento e a consciência da criança possam apresentar-se de forma incoordenada, aos poucos estes se cristalizam em sistemas cuja coerência se define gradualmente. Dessa maneira, os esquemas próprios da inteligência sensório-motora, em geral, são logo regidos pela lei da totalidade, em si mesmos e entre si. Analogamente toda a relação casual transforma um dado incoerente em meio organizado, etc. Por outro lado, a categoria de relação é fundamental, na medida em que é inseparável do pensamento e está combinada com todas as outras noções e estruturas. Já as categorias de ideal e valor são totalidades em via de constituição, sendo o valor, a desejabilidade não atingida de equilíbrio, enquanto o ideal é tão somente a forma não atingida de equilíbrio das totalidades reais (PIAGET, 1987).
Dito de outra forma, a totalidade ideal é sempre utópica, precisa que seja perseguida, e toda organização das totalidades entre os conjuntos vai inclinar-se para essa totalidade ideal. A relação entre os elementos que compõem uma totalidade e que dão um fechamento a uma totalidade supõe um certo estado de equilíbrio; como decorrência, ela é concebida de uma forma sempre idealizada e tudo aquilo que está nesse percurso são valores em relação a esse valor maior. Por exemplo, a filha de Piaget tenta retirar a chupeta dentro da caixa e para tanto ela agarra a mão da prima (a mão de outro).Se a criança puxa a mão da prima, esta não tem um valor em si, ela não está querendo brincar com a mão, ela utiliza a mão como instrumento para atingir um fim. Portanto, o interesse por essa mão é instrumental para atingir esse fim. Assim, o fim a ser atingido é o ideal, e este interesse passa a ter um valor relativo (PIAGET, 1987).
Então, como se pode conceber as categorias veiculadas à adaptação: assimilação e acomodação? É, enquanto órgão, que a inteligência tem seu funcionamento determinado por uma tendência à auto-regulação. È nessa predisposição definida pela necessidade sempre renovada de estabelecer o equilíbrio, através de mecanismos de adaptação, perdidos na relação de trocas do indivíduo com o seu meio, que é produzida a estrutura da inteligência. A assimilação se caracteriza pela interação do indivíduo com o meio, sem que para isso tenha de alterar-se a organização das estruturas existentes da inteligência. Já a acomodação, por sua vez, implica na alteração das estruturas existentes da inteligência em função das propriedades do meio, ou seja, os elementos assimilados do meio se transformam. É o movimento desencadeado pela acomodação que possibilita a reestruturação da organização da inteligência em sua totalidade (PIAGET, 1987).
As categorias da adaptação (assimilação e acomodação), pertencentes ao pensamento, são de funções implicativas e explicativas respectivamente. A função implicativa comporta duas invariantes funcionais: a) síntese de qualidade, isto é, as classes (conceitos ou esquemas) e b) relação quantitativa ou numérica, onde iremos encontrar essas categorias em todas as fases do desenvolvimento.Quanto às funções explicativas da acomodação, esta comporta um conjunto de operações que permite deduzir o real. Desse ponto de vista, dois aspectos complementares podem-se distinguir: um deles relativo à elaboração dos objetos, o outro referente à causalidade, sendo o primeiro, simultaneamente, o produto do segundo e a condição do seu desenvolvimento (PIAGET, 1987).
Assim, após definirmos o que é inteligência, iremos descrever o período sensório-motor, que compreende desde o nascimento até os dois anos, onde a atividade intelectual da criança é de natureza sensorial e motora. Para melhor ilustrar as ações desse período, serão descritas aquisições infantis em seis subfases, tendo como base principal à tríade piagetiana: O Nascimento da Inteligência (1987); A Construção do real (2001); A Formação do Símbolo na Criança (1973). Para esse intento, serão utilizados também outros autores.
Primeira subfase: o exercício dos reflexos (do nascimento até 1 mês)
Quando a criança nasce é herdeira de um conjunto de estruturas orgânicas adaptativas que fazem parte do seu equipamento hereditário e que é fundamental para que a mesma possa assimilar o universo em sua volta. Essas estruturas são os reflexos hereditários, tais como: sucção, preensão, visão, audição, fonação, etc (Ver figura 1- etapa I).Assim, após a criança introduzir o bico do seio em sua cavidade oral ou quando um outro objeto lhe é colocado na boca, o contato deste com a porção anterior da língua, desencadeia o reflexo de sucção.
Piaget (1987) procura estudar esses reflexos, com intuito de analisar os primeiros atos da inteligência, percebendo que desde o seu funcionamento mais primitivo eles deixam de ser automatizados e tendem a uma sistematização. Por exemplo, em alguns bebês, para que o reflexo de sucção, dê origem à deglutição, basta encostar a criança no mamilo. Ás vezes isso não ocorre, e o bebê, terá que se adaptar gradativamente ao mamilo, até garantir a deglutição. Portanto, a experiência física, desde as primeiras horas de vida do bebê, passa ter um papel fundamental, ou seja, o contato direto com o objeto modifica a atividade reflexa e conduz às primeiras adaptações.
Essas adaptações progressivas, nós remete aos processos de organização e adaptação, das quais a última esta subdividida em dois componentes inter-relacionados: assimilação e acomodação. Quanto à acomodação ela esta presente numa forma embrionária de duas maneiras. Primeiramente “sem nada reter do meio com tal, o mecanismo reflexo tem necessidade deste meio” (PIAGET, 1987, p.50), ou seja, os objetos irão propiciar a atividade uma apoio funcional que consolida e fortalece o reflexo (Figura 1 - etapa I). Em segundo lugar, ocorre acomodação sutil e limitada, como foi descrita acima quando a criança exibe um progresso mínimo (Figura 1- etapa II) mais bem definido na capacidade de distinguir e localizar o mamilo (FLAVELL, 1988).
No tocante a assimilação, ela esta presente, pois o próprio exercício reflexo incorpora todo e qualquer objeto suscetível de alimenta-lo. A assimilação apresenta-se sob três aspectos: reprodutora, generalizadora e recognitiva. A assimilação reprodutora é o próprio funcionamento do exercício reflexo. Por exemplo, observa-se no bebê uma sucção ao vazio. Entretanto, essa assimilação reprodutora conduzirá logo a uma assimilação generalizadora, que irá incorpora objetos variados ao esquema reflexo. Por exemplo, a criança ao explorar o meio chupa os seus próprios dedos, os dedos que lhe oferecem, o travesseiro, o cobertor, os lençóis, etc. Essa assimilação a objetos variados conduz a uma outra, a assimilação denominada de recognitiva; portanto a criança está com bastante fome, ao apresentar um dedo e um mamilo, ela irá rapidamente rejeitar o dedo em favor do mamilo. Anteriormente não era assim, bastava estar chorando de fome que o dedo do seu pai a fazia parar de chorar. Dessa forma, a criança passa a rejeitar o dedo do seu pai no momento, o que caracteriza um começo de reconhecimento prático ou motor, mas suficiente para que se possa falar em assimilação recognitiva. E assim, a assimilação simultaneamente reprodutora[2], generalizadora[3] e recognitiva[4] constituem o princípio do exercício fundamental, a propósito da sucção.
Os exercícios reflexos desde os primórdios da aprendizagem constituem totalidades organizadas, na medida em que esta é o aspecto interno dessas adaptações progressivas. Assim, a exploração precoce do bebê em contato com o seio representa a primeira manifestação de um dualismo entre o desejo e a satisfação, portanto, entre o valor e o real, entre totalidade que se completa e totalidade incompleta, dualismo esse que reaparecerá em todos os planos da atividade futura e cuja redução será tentada ao longo de toda evolução mental, embora esteja destinado a acentuar-se incessantemente.
Entretanto, essa assimilação generalizadora atribuída ao lactante não é consciente e intencional, mediante uma passagem do singular ao geral, já que a generalização em si é uma atividade inteligente. O autor sustenta que o recém-nascido, sem consciência alguma dos objetos individuais nem das regras gerais, incorpora logo ao reflexo global de sucção um número de objetos cada vez mais variado, o que explica a rapidez generalizadora desse processo de assimilação. E mais, as primeiras assimilações de sucção, mesmo quando testemunham “uma indiferenciação entre o contato com o seio e o contato com os outros objetos, não são simples confusões destinadas a desaparecer com o progresso da nutrição, mas, pelo contrário, constituem o ponto de partida de assimilações cada vez mais complexas” (PIAGET, 1987, p.44).
Em resumo, quando a criança nasce, os reflexos hereditários estão postos em funcionamento, não exigindo nenhuma adaptação. São, portanto as primeiras experiências físicas que conduzirão o organismo às primeiras adaptações e acomodações. Entretanto, essas acomodações são sutis e limitadas, não levam a uma mudança acentuada no esquema de sucção. Isso ocorre, porque a assimilação e acomodação são indiferenciadas, funcionando como uma totalidade rígida e “desconhecendo” os objetos que assimila. A criança, portanto existe num estado de total e completo egocentrismo. Mais o exercício reflexo prepara o desenvolvimento das estruturas cognitivas seguinte, além de manter as necessidades de sobrevivência e proteção, indispensáveis a manutenção da vida (FAVELL, 1988).
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Quando a atividade da criança retém algo exterior a ela, há uma acomodação adquirida ou a formação de hábitos. Entretanto Piaget (1987) toma emprestado de J. M. Baldwin o termo “reação circular”, evitando as expressões “associação adquiridas”, “hábitos” ou “reflexos condicionados”, próprios de uma Psicologia empirista. Portanto as reações circulares[5] são repetições de uma conduta que tendem a conservar-se e a aperfeiçoa-se, ou seja, os reflexos tornam-se mais organizados convertendo-se em esquemas. Assim, diferentemente do reflexo, um esquema supõe uma organização de ações para que a criança possa responder melhor às estimulações do ambiente. Por exemplo, a sucção do polegar, que já existe antes mesmo da criança nascer, é um reflexo; entretanto, já sucção sistemática e eficiente do polegar é um esquema adquirido, ou hábito ou, como prefere Piaget, uma reação circular primária.
Desse modo, a reação circular primária representa um procedimento de grande importância para o desenvolvimento da criança, pois ela comporta a síntese ativa da assimilação e da acomodação. Sob esse prisma, pode-se dizer que a reação circular primária é assimilação medida em que mantém o exercício funcional, ao qual permite que algo novo no ambiente vai integrado-se progressivamente na atividade cortical e subordinando as adaptações inatas às não-inatas. Mas é também acomodação na medida em que realiza uma nova coordenação não dada no mecanismo hereditário.
Assim, as reações circulares primárias (figura1 – etapas III e IV), representam as descobertas sobre o próprio corpo no decurso do segundo mês de vida. Assim, essas ações que ocorrem de maneira fortuita, levam a criança a um interesse pela sua reprodução. Entretanto, vale ressaltar que o interesse da criança está centrado na própria ação e não no objeto da ação. Por exemplo, quando Laurent chupa o polegar de forma sistemática, já não ao acaso dos encontros, mas agora por coordenação entre a mão e a boca, o seu interesse não é pelo polegar em si mas o próprio ato de sucção, ou quando sua irmã Luciene apanha os objetos dentro do berço e solta, volta a pegar novamente e deixa novamente cair, o seu maior interesse não é pelo objeto mas pela própria preensão.
Dessa forma, a aquisição desses novos hábitos prolongam o exercício reflexo e fortifica todo conjunto alimentar sensório-motor, ampliando e enriquecendo progressivamente o esquema total, sem que este deixe de permanecer sempre organizado. Isso ocorre porque a criança assimila as novas sensações que está experimentando ao esquema de sucção anterior, ou seja, à sucção do seio, etc. Ao mesmo tempo, os movimentos de protrusão da língua ou de adução do polegar são inseridos na totalidade já organizada dos movimentos de sucção – e é isso o que constitui a acomodação. Graças a essa dinâmica, o esquema de sucção vai cada vez mais se diferenciando e cada uma dessas impressões sensoriais passa a ser classificada formando um determinado subesquema (figura 1 - etapa III). Quando a criança modifica um esquema, passa a dominar tanto o esquema original quanto o modificado. Dessa maneira, a possibilidade de aquisição do conhecimento propiciada pela interação entre a criança e o meio se amplia.
Continuando sua análise, Piaget (1987) afirma que essa atividade de adaptação, cujo hábito é uma automatização, não seria propriamente a inteligência, porque lhe falta as características estruturais (intencionalidade e mobilidade dos esquemas), mas já estão presentes nesse momento todas as características funcionais da inteligência. Esta nascerá da adaptação ativa, mediante reflexões e diferenciações no sujeito. Dessa forma, os hábitos já são um rumo à conduta (organização interna) intencional inteligente.
Quanto às categorias do real, podemos dizer que durante essas duas subfases iniciais o universo infantil é formado por quadros suscetíveis de recognições, mas sem permanência substancial ou organização espacial, ou seja, para a criança o objeto que desapareceu não é ainda um objeto permanente que se desloca, é um quadro que vem do nada, aparece e desaparece sem uma razão aparente. Por exemplo, um quadro que se eclipsa, imediatamente cai em esquecimento, isto é, no nada afetivo, ou então, a criança sente falta dele, deseja-o, espera por sua volta (PIAGET, 2006). A única conduta utilizada para reencontrá-lo é a repetição simples das acomodações anteriores, que fazem as reações circulares primárias evoluírem, tornarem-se secundárias, as quais serão descritas na terceira subfase.
Em resumo, a aquisição do hábito representou uma evolução na conduta do lactante. Essa evolução pode ser descrita assim: ao acaso a mão da criança toca acidentalmente a boca, que começa a sugá-la, em seguida ele tenta reproduzir o acontecimento até que o domina completamente – chupa sistematicamente o polegar.Assim essa nova conduta adquirida tende a ser mantida. Através do jogo complexo de assimilação reprodutora, generalizadora e recognitiva as condutas vão se consolidando dando origem a condutas mais complexas. Passemos agora à terceira subfase.
Terceira subfase: as condutas quase intencionais anunciam a inteligência empírica (dos 4 aos 8 meses)
Desse modo, ao experimentar ao acaso algo que desperte a sua curiosidade, a criança é motivada a repetir, a fim de reencontrar o espetáculo produzido anteriormente; a essas repetições denominamos de reação circular secundária. Dessa forma, a criança poderá, então, olhar e pegar a fralda para sugá-la, olhar e pegar um brinquedo, olhar, pegar a vara e bater com ela na argola, etc, o que facilitará a discriminação das características e funções dos objetos. Por esses fatos, esse segundo nível passa a ser um salto para as novas aquisições cognitivas. Entretanto, as reações circulares secundárias são uma primeira manifestação de intencionalidade na criança (ou quase intencionalidade), conceito que desempenhará papel determinante na definição da inteligência. As condutas quase intencionais anunciam a inteligência empírica[6], todavia estas ainda permanecem intermediárias entre as associações adquiridas e o verdadeiro ato da inteligência, característica da quarta subfase. Pois nesta subfase o comportamento que caracteriza a intencionalidade ainda depende da repetição (reação circular secundária), visto que a motivação da criança resulta, simplesmente, de conservar e reproduzir o resultado interessante descoberto por acaso.
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Figura 1: Transição de reflexos hereditários para as primeiras acomodações adquiridas.
Fonte: elaborado pelo autor
Para melhor compreensão dessa etapa, tomaremos como exemplo a seguinte passagem: Laurent segura uma vara com a qual não sabe o que fazer e vai passando lentamente de uma mão para outra e acaba batendo ocasionalmente numa argola suspensa no teto do berço. Imediatamente interessado pelo que ocorreu, volta a bater com a vara na argola do berço várias vezes. Dessa forma, ele empenha-se intencional e sistematicamente em reencontrar as condições que o levaram a esse resultado inesperado. Por isso, não podemos falar em um ato típico de inteligência, pois as relações utilizadas pelas crianças foram descobertas ao acaso e não com o propósito de resolver um problema ou satisfazer uma necessidade: a necessidade nasceu da descoberta e não está na própria necessidade (PIAGET, 1987). Passemos agora a analisar a assimilação, acomodação e a organização dos esquemas em relação às reações circulares secundárias.
A assimilação apresenta-se sob três aspectos: reprodutora, recognitiva e generalizadora. Na assimilação reprodutora, os movimentos estão centrados num resultado produzido no meio exterior e a ação tem por única finalidade manter esse resultado. Por outro lado, ela prepara a assimilação recognitiva; ou seja, após uma assimilação reprodutora, esta logo acarreta a formação de um reconhecimento sensório-motor.O próprio fato de reencontrar um resultado interessante (é essa a definição de reação circular secundária) acarreta um reconhecimento cada vez mais preciso. Esse esquema constituído é reativado cada vez que a criança entra em contato com os objetos a propósito dos quais ele foi originado. Entretanto, há uma generalização simples dos esquemas secundários, pois a criança ainda não se interessa pelas coisas em si, ela apenas procura exercer os seus esquemas secundários mediante pura assimilação funcional.
O processo de acomodação ocorre quando a criança descobre um fenômeno imprevisto (bater com a vara na argola) e procura reencontrar os movimentos que produziram o fenômeno, levando a novos resultados. Ao assimilar esse resultado novo, por conseguinte, ela fixa intencionalmente esse processo. Assim, é por meio dessas acomodações que a criança começa a separar seu corpo dos objetos externos, e, para tanto, precisa coordenar vários esquemas sensórios-motores (olhar e bater; olhar e ouvir, etc). Já no campo da organização, as totalidades estão mais estruturadas que as reações circulares primárias, na medida em que a criança estabelece relações. Por exemplo, quando Laurent descobre que a vara serve para agitar a argola presa no teto do berço, ele consegue estabelecer essa relação entre a vara e o agito da argola. Dessa forma, os meios começam a se distinguir dos fins e, por conseqüência, os gestos executados e os objetos utilizados revestem-se, de agora em diante, de valores diferentes, subordinados a uma totalidade ideal.
Vale ressaltar que as aquisições cognitivas podem ser ampliadas nesse nível, o que depende das oportunidades dadas por seu ambiente. Assim, a colaboração de pais e educadores são importantes para enriquecer o meio infantil com materiais manipuláveis. Todavia, deve-se respeitar as possibilidades de assimilação da criança, sempre procurando oferecer de maneira equilibrada esses materiais de manipulação.
Quanto à categoria do real, a novidade é a coordenação dos diferentes grupos práticos entre si; portanto, a criança coordena o espaço visual com o bucal, o espaço bucal com o tátil cinestésico, etc. Isso permite a criança situar os objetos em relação ao seu corpo em função de seus atos, mas ela ainda não é capaz de situá-los em relação aos outros e não postula a permanência deles fora do seu campo e ação; assim, um objeto completamente coberto por um lenço não é reconhecido pela criança.Entretanto, se o objeto for coberto parcialmente por esse lenço, ela reconhece a parte do objeto, puxa o lenço e apanha o objeto para si. No tocante à causalidade, ela permanece impregnada de eficácia e de fenomenismo, não chegando a uma objetivação ou uma espacialização reais (PIAGET, 2006).
Em resumo, a única diferença entre as reações circulares secundárias e primárias é que o interesse está focado no resultado exterior e não na atividade como tal, pura e simplesmente. Dessa forma, ainda nesse nível, a ação executada pela criança consiste sempre numa ação global e única, caracterizada por um só esquema, sendo que meios e fins se distinguem no sentido de que os gestos da criança são seriados e complexos em suas relações recíprocas. Mas os meios e fins ainda são inseparáveis uns dos outros em relação ao todo.
Quarta subfase: as condutas intencionais constituem-se num ato inteligente (dos 8 aos 12 meses)
Nesse período, a criança apresenta um salto qualitativo no seu desenvolvimento cognitivo, com a aparição de condutas que Piaget (1987) classifica como inteligência. Assim, a inteligência é definida como a busca intencional de meios para atingir um fim, ou seja, a criança tem um propósito pelo qual orientará as suas atividades. Ela já é capaz de coordenar intencionalmente os esquemas e isto irá constituir-se num ato inteligente. Assim, a inteligência não se limita a reproduzir, pura e simplesmente, os resultados interessantes, mas a atingi-los graças à capacidade de combinar, dissociar e recombinar vários esquemas (Figura 2- etapas I, II e III). Em outras palavras, a ação da criança torna-se cada vez mais coordenada. Assim, tendo em vista uma melhor adaptação aos objetos externos, o comportamento do bebê torna-se intencional por natureza, e a criança começa a resolver pequenos problemas.
As condutas desse período têm como principal característica a coordenação mútua dos esquemas secundários que, através de suas separações e seus reagrupamentos, dão origem a um sistema de esquema “móvel”, cujo funcionamento é comparável aos dos conceitos e juízos próprios da inteligência verbal ou refletida[7] . Mas para que esses esquemas, até então isolados, sejam mutuamente coordenados num ato único, é necessário que a criança tenha um propósito e tente atingi-lo. Nesse momento, ela deverá utilizar-se de esquemas até então, relativos a outras situações. Sendo assim, a ação deixa de funcionar como simples repetição, passando a admitir dentro dos esquemas principais toda uma série mais ou menos longa de esquemas transitivos. Esses esquemas transitivos, derivados dos esquemas circulares anteriores foram subordinados aos esquemas finais; portanto, dos meios aos fins, opera-se pela coordenação dos esquemas independentes.
Para melhor compreensão desse nível, tomaremos, como exemplo, Laurent aos oito meses e um dia, quando ele balança uma caixa para fazer chocalhar as pastilhas que se encontram no seu interior. Piaget (1987) coloca a mão no braço da criança para impedir o jogo. Laurent tenta ignorar o próprio braço, cuja mão segura a caixa, mas vendo que a mão é indispensável para obter o movimento desejado, ele estende a outra mão afastando a mão do pai - a qual impedia a realização do ato. Esse comportamento, nascido dos obstáculos interpostos (a mão de Piaget, segurando o braço de Laurent), gera a intencionalidade, conseqüentemente, se há intenção, podemos falar em atos inteligentes. Agora, analisaremos a assimilação, a adaptação e a organização próprias dos esquemas móveis.
Com relação à assimilação, dois aspectos complementares caracterizam os esquemas quando comparados aos esquemas secundários da terceira fase: eles são mais móveis e, portanto, mais genéricos. Por exemplo, o esquema que consiste em puxar um cordão para sacudir uma argola suspensa supõe uma coordenação muito complexa de movimentos e de percepções envolvendo, pelo menos, dois objetos (o cordão e a argola).Tal esquema anuncia o esquema da quarta fase, porque os próprios objetos se relacionam. Além disso, o esquema de “puxar o cordão” aplica-se a uma série de outros objetos e, por conseguinte, ocorre uma generalização.
Já no que se refere à acomodação, é possível distinguir a “aplicação de meios” conhecidos a novas situações. Portanto, ela é mais refinada do que a dos esquemas estudados até aqui, dado que os esquemas móveis se aplicam às relações entre às coisas exteriores e não mais somente as coisas em sua ligação única como atividade do sujeito. Logo, a acomodação só progride em função da coordenação dos esquemas. Isso é demonstrado quando a criança repele os obstáculos, aproxima dos objetos a mão do outro, etc. Em tais casos, a criança não procura atingir um novo fim relativo ao objetivo nem descobrir um novo processo: limita-se a coordenar dois esquemas entre si.
Figura 2: Coordenação e mobilidade dos esquemas secundários
Fonte: Elaborado pelo autor.
No tocante à organização ou adaptação interna, esta caracteriza o interior de cada esquema como as relações entre os vários esquemas. Ora, a grande originalidade dessa fase, em relação às precedentes, é que a organização mútua entre os esquemas se afirma, pela primeira vez, de maneira explícita e, ao mesmo tempo, desvenda a organização interior de cada esquema, considerado como totalidade[8]. Ele também distingue dois tipos de totalidade: a primeira refere-se a totalidades em via de elaboração: onde valor e ideal [9] se diferenciam muito mais claramente nessa fase e, a segunda, refere-se a totalidades completas: onde as relações das totalidades apresentam-se com mais clareza do que antes.
Em relação às categorias do real, a coordenação mútua dos esquemas secundários faz-se acompanhar de um progresso correlativo no tocante ao objeto, à causalidade e ao tempo. A permanência do objeto é estabelecida, o eu e o mundo se tornam progressivamente diferenciados. Dessa forma, as séries causais ultrapassam, com efeito, as relações simplesmente globais entrem as atividades próprias e os movimentos exteriores, para se objetivarem e especializarem. Ou melhor, a criança começa a descobrir a existência de uma relação entre a causa e o efeito e, por conseqüência, as séries temporais começam a ser ordenadas em função da sucessão dos eventos e não apenas nas ações. Desse modo, o espírito do sujeito é diferente e, em vez de concentrar o universo em si mesma, começa a situar-se num universo independente dele (PIAGET, 2006).
Em resumo, quando a criança chega ao oitavo mês de vida, suas ações tornam-se cada vez mais coordenadas. Ao experimentar sucessivamente cada um de seus esquemas, a criança dá mais a impressão de fazer uma experiência do que de generalizar pura e simplesmente, procurando compreender as suas condutas. Em outras palavras, tudo se passa como se a criança dissesse para si mesma, na presença do novo objeto: “O que é essa coisa? Vejo-a, ouço-a, agarro-a, apalpo-a, reviro-a, sem a reconhecer. O que mais poderei fazer com ela?” Sabe-se que, nessa idade, a compreensão é puramente prática ou sensório-motora, e os únicos conceitos existentes são os esquemas móveis, por conseguinte, a criança procura fazer entrar o novo objeto em cada um dos seus esquemas, para ver em que eles lhe podem convir.
Por outro lado, a criança limita-se a coordenar entre eles os esquemas já conhecidos, em vez de diferenciá-los por acomodação progressiva, ajustando assim uns aos outros. Nesta subfase, as relações estabelecidas entre a criança e os objetos ainda dependem de esquemas já montados, dos quais só a coordenação é considerada nova. Desse modo, a criança não chega à elaboração de objetos inteiramente independentes da ação, nem de grupos espaciais inteiramente objetivos.
Quinta subfase: a conduta da vara anuncia a inteligência sistemática (dos 12 aos 18 meses)
Nessa subfase, predomina a elaboração do objeto pela criança, que é caracterizada pela construção de novos esquemas. Estes se originam não mais da simples repetição de resultados fortuitos, mas de uma espécie de experimentação para compreender as novidades do objeto explorado. Essa experimentação é a própria reação circular terciária[10], que é um tipo superior de coordenação de esquemas. Em outras palavras, quando a criança não consegue assimilar certos objetos ou certas situações aos esquemas até aqui encaixados, a mesma adota uma conduta imprevista: ela investiga, por uma espécie de experimentação, em que sentido o objeto ou evento é novo.
Através dessa investigação sistemática, a criança adapta-se verdadeiramente às situações desconhecidas, não só utilizando esquemas anteriores como promovendo uma coordenação dirigida pela busca dos mesmos. Disso resulta toda uma série de conseqüências fundamentais, por uma parte, ao funcionamento da inteligência e, por outra parte, às categorias essenciais do pensamento concreto. Ou melhor, quando a criança não consegue assimilar certos objetos ou certas situações aos esquemas existentes, ela adota uma conduta imprevista e, através de uma investigação sistemática (espécie de experimentação), ela tenta desvelar em que o objeto ou evento é novo. Dessa forma, a criança irá provocar os resultados novos em vez de simplesmente reproduzi-los.
Assim, a “experiência para ver” revela uma tendência para uma progressão na conquista do meio exterior pela criança. Essa mobilidade das ações permite uma verdadeira pesquisa dos objetos, a fim de conhecer suas características físicas e funcionais. Piaget ilustrou tal conquista infantil por intermédio de seu filho, a saber: Laurent sentado num cesto oval deixa cair de sua mão uma série de objetos, variando as condições e estudando suas trajetórias (ora deixa cair o objeto por cima da borda, ora à direita, ora à esquerda).”Tenta sempre revê-lo, dobrando e contorcendo o corpo, mesmo quando o objeto cai a 40 ou 50 cm dele. Procura, em especial, reencontrar o objeto quando este rola sob a borda do cesto e fica, portanto, invisível” (PIAGET, 1987 p. 254).
Por meio de outras observações, Piaget (1987) detecta que a criança repete constantemente o ato de largar, lançar ou fazer rolar os objetos, mas procede assim sem saber o que acontecerá e tem a intenção de descobrir. Por conseguinte, ela repete a experiência para compreender o fenômeno e não para repetir simplesmente o resultado. Nesta subfase, a criança procura analisar menos e compreender mais e não somente reproduzir, como nas reações circulares secundárias da subfase anterior.
Continuando seu trabalho, o autor analisa a conduta das crianças em relação às experiências com o suporte e com o barbante. As crianças descobrem progressivamente as verdadeiras relações existentes entre os objetos e os prolongamentos (suporte e barbante), descobrindo, assim, que pode utilizar o segundo para trazer para si o primeiro. Assim, elas demonstram formas mais elevadas da atividade intelectual antes do aparecimento da inteligência sistemática. Vejamos o exemplo a seguir: Jaqueline está sentada no seu carrinho de bebê junto à mesa. “Mostro o seu cisne, atado a um barbante pelo pescoço; depois coloco o cisne em cima da mesa, deixando o barbante no carrinho; depois de muitas tentativas, aos 1;0 (9) finalmente Jaqueline conduz para ela o objeto” (PIAGET, 1987, p. 274).
A relação que a criança estabelece entre o suporte, o barbante e o objeto que ela deseja alcançar torna-se mais complexa quando a criança descobre o uso do objeto como instrumento para atingir seu objetivo. Veja o exemplo, a seguir, quando Jaqueline com um ano, três meses e doze dias “descobre a possibilidade de fazer os objetos deslizarem no chão por meio da vara e assim atrai-los para si: para agarrar uma boneca caída por terra, fora do seu alcance começa por bater com a vara e, depois, verificando seus ligeiros deslocamentos, empurra-a até poder alcançá-la com a mão direita” (PIAGET, 1987, p. 283).
Dessa forma, a conduta da vara anuncia assim a inteligência sistemática. O começo de uma união interdependente entre as experiências cumulativas anteriores e atividade assimiladora permitirá à criança uma invenção e dessa maneira ela utilizará a vara como instrumento para atingir seu objetivo. Em suma, acomodação própria da descoberta do meio novo (utilizar a vara) não se opera em virtude a uma reorganização súbita mas graças a uma série de experiências cumulativas que se assimila reciprocamente. Convém ressaltar que para Jaqueline aprender a utilizar a vara e alcançar seus objetivos ocorrerão várias experiências mostrando assim que a aprendizagem verificada era derivada da experiência, ou seja, consistia em aplicações simples do conhecido ao novo.
Em resumo, a criança nesse nível trabalha em cima de tentativa (experiência para ver) para poder atingir seu objetivo. A criança, ao estudar as mudanças de posições e de trajetória e ao estabelecer relações entre os prolongamentos, ou, então, ao utilizar um instrumento para atingir seu objetivo, vai acomodando-se a cada uma dessas tentativas. Dessa forma, essas tentativas têm um efeito cumulativo, durante o qual cada nova exploração é orientada pelas anteriores. Essa aprendizagem não é outra coisa senão uma reação circular que se desenvolve por meio de assimilação: reprodutoras, recognitiva e generalizadora.
Sexta subfase: a invenção mental liberta o pensamento de todo e qualquer determinismo e define a inteligência sistemática (dos 18 aos 24 meses)
Nesse período, a criança adquire a capacidade de usar símbolos mentais para se referir a objetos ausentes do meio imediato. Assim, com o aparecimento dessa nova capacidade, a consciência das relações atinge uma profundidade, permitindo que esta estabeleça uma previsão mediata, o que significa justamente uma invenção que se desenvolve por simples combinação mental. E assim, logo há um refreamento da experiência imediata como requisito para alcançar seus objetivos.
Entretanto, devemos destacar que, no processo de aprendizagem dos níveis anteriores, a experiência tinha um papel predominante para a criança alcançar seu objetivo. Portanto, a descoberta predominava em relação à invenção genuína ou, então, consistia em aplicações simples do conhecido ao novo. Em contrapartida, logo que surge a invenção real, o processo do pensamento desorienta a análise e parece escapar a todo e qualquer determinismo. Como exemplo de uma invenção genuína, será descrito o experimento em que Laurent descobriu, de repente, o uso da vara, após ter permanecido meses inteiros sem saber utilizar esse instrumento.
[...] aos 1; 4 (5), Laurent tenta primeiramente agarrar diretamente o pão, sem fazer caso do instrumento, e depois desiste.[...] Laurent olha novamente para o pão, sem mexer, olha de relance para a vara e, então, bruscamente, apanha-a e dirige-a para o pão. Acontece, porém, que a empunhou pelo meio e não por uma das suas extremidades, de modo que fica demasiado curta para atingir o objetivo. Laurent larga-a e volta a estender a mão para o pão. Depois, sem que o gesto se faça tardar, retoma a vara, desta vez por uma das extremidades e atrai para si o pão (Piaget, 1987, p. 315).
Sob essa ótica podemos dizer que a invenção supera as explorações tateantes, propiciando uma solução imediata para o problema que se impõe. Outrossim, a presente conduta foi dependente de uma invenção súbita, sendo controlada por combinações mentais. Quer dizer, a criança prevê quais manobras fracassarão e quais terão êxito, antes de experimentar. Sobremaneira, o controle da experiência incide sobre a totalidade dessa dedução e não mais sobre os pormenores de iniciativas singulares.
Em relação às categorias do real, a criança com o emergir da representação e da invenção mental é capaz de simbolizar ações ou fatos antes de efetivamente praticar qualquer comportamento específico. As soluções para os problemas são elaboradas em termos de dimensão mental ao invés de dimensões físicas. O autor mostra também que nessa subfase o conceito de permanência do objeto é claramente estabelecido na criança. A mesma procurará por objetos deslocados no espaço, que desapareceram de sua vista, em vez de procurá-los na área, onde foram escondidos por último (PIAGET, 2006).
No final dessa subfase, ocorre uma descentralização do corpo da criança. Ela deixa de ser um corpo determinado por um universo sensorial e passa a ser um corpo entre outros num espaço e tempo. Ela pensa que este corpo produz efeito sobre o real, da mesma forma que este produz efeito sobre outros corpos. Porém, a abstração empírica domina a abstração reflexionante, que se encontra muito limitada. A criança, em suas experiências simples, por meio da abstração empírica e pela repetição dos fatos do dia-a-dia, vai experimentando regularidades, através de generalizações indutivas e pode construir a maioria de seu marco lógico matemático elementar para conhecer o mundo.
A construção desse marco inicial é essencial e básica para a evolução posterior que requer uma projeção de coordenações anteriores em um plano superior. Entretanto, os esquemas da inteligência sensório-motora ainda não são de fato conceitos, por isso não podem ser manipulados por um pensamento. Para que isso ocorra, a criança terá que passar ainda por uma longa evolução mental, até que as ações se interiorizem em operação.
Considerações finais
Devemos a Piaget a primeira e sistemática descrição do desenvolvimento da inteligência em bebês recém-nascidos até os dois anos de idade, período caracterizado por ele como sensório motor. Assim, graças à observação das condutas dos seus três filhos (Luciene, Jaqueline e Loran) levaram-no a concluir que existe uma inteligência motora anterior a uma inteligência simbólica (baseada na representação mental e na linguagem).
Assim, o período sensório-motor têm como foco a interação dos sentidos do bebê com o ambiente, através de experiências. Dessa forma, Piaget conclui que a criança vai explorando o mundo dos objetos (chupa, olha, agarra, estica, bate, puxa, etc.) assimilando e adaptando-se a estes. Em seguida, ela repete continuadamente esse processo, ou seja, volta a assimilar e adaptar-se cada vez mais novos objetos. Dessa forma, o bebê se desloca de um nível neonatal, marcado por uma completa indiferenciação entre o subjetivo e o objetivo, para uma organização relativamente coerente, capaz de ação sensório-motora no âmbito de seu ambiente entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido.
No final do período sensório-motor, a criança já e capaz de condutas mais complexas, como a de dedução, que ultrapassa a experimentação efetiva, ou seja, a invenção, evocação representativa por imagens-símbolo e tantas outras que assinalam o final da inteligência sensório-motora. Por conseguinte, ocorre uma verdadeira revolução copernicana na criança, ou melhor, a descentração do corpo da criança, onde esta deixa de ser um universo centrado em si mesma, para ser um corpo entre outros corpos num espaço e tempo e sujeitos a causalidade.
Pode-se inferir que esse período é extremamente importante para o desenvolvimento da criança, porque é durante o mesmo que as mudanças mais fundamentais e mais rápidas se processam. Portanto, pais e educadores podem ser facilitadores no processo de conquista do conhecimento das crianças, na medida que expõem para elas uma variedade de objetos para manipulação. E, quanto mais material tiver ao seu redor, mais a criança será estimulada a elaborar seus esquemas e a controlá-los para descobrir novas condutas. Os pequenos não devem ser motivados a respeitar um tipo de rotina e organização. Pelo contrário, as crianças devem mexer em tudo, desorganizando o meio, para organizar e construir sua inteligência.
Referências bibliográficas
BRINGUIER, Jean-Claude. Conversando com Jean Piaget. Rio de Janeiro.Difel, 1978.
DELVAL, Juan.Crescer e pensar. A construção do conhecimento na escola.Porto Alegre, Artes Médicas, 1998.
EVANS, Richard I. Jean Piaget: o homem e suas idéias. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1980.
FLAVELL, J.H. A psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget.São Paulo, Livraria Editora Pioneira, 1988.
LAJONQUIÈRE, Leandro. Piaget: notas para uma teoria construtiva da inteligência. Psicol.USP vol.8n1 São Paulo, 1997.
MATURANA, R, H e VARELLA, J, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas para a compreensão humana.São Paulo: Editora Pala Athena, 2001.
MONTANGERO, Jacques e MAURICE-NAVILLE, Danielle. Piaget ou a Inteligência em Evolução.Porto Alegre, Artmed, 1998.
PIAGET, Jean. A construção do real na criança. São Paulo: Editora Ática, 2006.
_______. O Nascimento da Inteligência na Criança. Rio de Janeiro: LTC, 1987.
_______. O estruturalismo. Rio de Janeiro: Difel, 1969.
_______. A Formação do Símbolo na Criança. Imitação, Jogo Sonho, Imagem e Representação. Rio de Janeiro: LTC, 1990.
[1] Professor Assistente do Departamento de Ciências Biológicas da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
E-mail: Jerrypa@uol.com.br e Jerrypa@uesb.br.
[2] Exemplo de assimilação reprodutora: O lactante tem uma tendência forte a repetir a atividade de sucção, que esta atividade vai se exercer no vazio. Esse mesmo exercício pode ser observado alguns meses mais tarde, quando o lactante, que acaba de produzir um resultado interessante, como movimentar as argolas puxando o cordão, tende a repetir incansavelmente essa ação (Montangero e Naville, 1998).
[3] Exemplo de assimilação generalizadora ou transpositiva: Quando o lactante adquire o esquema de sucção do polegar, tudo o que é preensível é levado à boca e sugado (Montangero e Naville, 1998).
[4] Exemplo de assimilação recognitiva: o recém-nascido pode discriminar entre o dedo oferecido por Piaget e um mamilo, este irá rapidamente rejeitar o dedo em favor do mamilo (Montangero e Naville, 1998).
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[5]Segundo Piaget, a repetição da ação é muito importante para o desenvolvimento da criança, pois é através dessa repetição que a criança passa a dominar perfeitamente a ação. As reações circulares expressam justamente essa idéia e foi classificada em três tipo: a) reação circular primária; b)reação circular secundária e c) reação circular terciária.E todas elas comportam um procedimento de grande importância para o desenvolvimento da criança, pois ela comporta a síntese ativa da assimilação e da acomodação (DELVAL, 1998). Ao longo do texto será defendido cada um dos três tipos.
[6] “Mesmo entre os atos intencionais que constituem a inteligência, é possível distinguir dois tipos relativamente opostos de inteligência, correspondendo ao que Claparède chama de inteligência empírica e inteligência sistemática. A primeira consiste em operações controladas pelas próprias coisas e não apenas pela dedução e a segunda em operações interiormente controladas pela consciência das relações, marcando assim o começo da dedução” (PIAGET, 1987.p. 148).
Obs: nas subfases 3, 4 e 5, encontra-se a inteligência empírica.Somente na sexta subfase podemos falar no aparecimento da inteligência sistemática.
[7] “Piaget ressalta que tais analogias funcionais em nada implicam, naturalmente, uma identidade de estrutura entre os esquemas práticos e as unidades do pensamento refletido. Duas diferenças essenciais opõem-se: em primeiro lugar, os esquemas sensório-motores não são ‘refletidos’ mas projetados nas próprias coisas, isto é, a criança não tem consciência das operações da sua inteligência e considera os resultados da sua própria atividade como impostos pelos fatos como tais; em segundo lugar,“as implicações entre os esquemas ainda não estão reguladas por um sistema de normas interiores; o único controle de que a criança é capaz situa-se no plano do êxito e não da verdade (PIAGET, 1987, p. 228).”
[8] “No tocante à totalidade, todo o esquema de assimilação constitui uma totalidade verdadeira, isto é, um conjunto de elementos sensório-motor mutuamente dependente ou que não podem funcionar uns sem os outros. Em decorrência dos esquemas apresentarem tal estrutura, a assimilação mental se torna possível e um objeto qualquer pode ser incorporado a um dado esquema. Inversamente essa estrutura total depende da assimilação. Dessa forma, um feixe sensório-motor só constitui uma verdadeira totalidade se for suscetível de conservação ou de repetição, graças à própria ação da assimilação. A organização ‘total’ e a assimilação constituem, pois, os dois aspectos de uma só realidade, o aspecto interno e externo” (PIAGET, 1987 p. 233).
[9] “No que diz respeito a valor e ideal, Piaget ressalta que, a mão do outro nas condutas da presente subfase, já não se caracteriza unicamente por um valor ou pelo para’valor’ e ‘não-valor’; ela tanto pode ser considerada um obstáculo, um agente intermediário útil ou um fim em si, segundo esteja relacionada com um objetivo sobre o qual essa mão pode agir ou, ainda, se for encarada em si mesma, isto é, não como obstáculo nem agente, mas como objeto em si (PIAGET, 1987 p.233).
[10] Antes de entrarmos no quinto nível, onde aparecem novas condutas, classificadas por Piaget de reações circulares terciárias, poderíamos questionar: qual a diferença entre reação circular secundária e terciária? Inicialmente, é importante ressaltar que as reações circulares terciárias derivam diretamente das secundárias, sendo que a única diferença entre as duas é que, no caso das terciárias, a criança obtém um efeito imprevisto na manipulação com o objeto. Ela não apenas reproduz, mas também intervém modificado-o, com o propósito de estudar sua natureza. As reações circulares terciárias também levarão a criança aos novos resultados complexos de inteligência, a qual Piaget denomina a descoberta de novos meios por “experimentação ativa”. Assim, através das ativas experimentações de tentativa e erro, a criança descobre novos meios para alcançar os objetivos (PIAGET,1987).
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